sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Novo, novidade, renovação



Paul Klee, Angelus Novus, 1920

Jamais existe o novo em estado puro. Admitir isso é pressupor que não houve história viva antes. É achar que tudo começará do zero, que nunca antes alguém fez o que eu prometo fazer. É agir como se tudo o mais pudesse ser sumariamente suprimido, ou neutralizado, ou desprezado, menos eu, minhas ideias e minhas realizações. O novo está sempre determinado pela história e pelas circunstâncias. É relativo, não absoluto.
É muito fácil manipular o novo, assim como demonizá-lo e vê-lo com suspeição. A direita é especialista em fazer isso.
Apesar disso, vivemos orientados pela busca do novo. Quem não pensa assim, vive parado ou olhando para trás. Um novo governo, uma nova cultura, uma nova vida, um novo homem, uma nova política são sinalizações utópicas que animam as gentes e as fazem refletir.
Na vida real, há sempre uma fusão entre novo e velho, uma luta entre eles. Frase famosa de Gramsci: épocas de crise são aquelas em que se abre um intervalo no qual “o velho morre e o novo não pode nascer”. Na história, fases, relações, relacionamentos, hábitos, ideias e instituições são ultrapassados e desconfigurados pelos processos de transformação.
Deste ponto de vista, a história é luta permanente entre ideias e práticas cristalizadas, que representam uma fase ultrapassada da História, e necessidades práticas atuais, que se impõem com o signo da novidade. Ou seja, luta permanente entre “o que foi pensado e o novo pensamento, entre o velho que não quer morrer e o novo que quer viver”.
A assimilação do novo que emerge ou é anunciado varia conforme as classes, os interesses e as posições sociais. Setores há que abraçam cegamente o que é novidade, o dernier cri. Outros resistem bravamente a tudo que possa ameaçar sua estabilidade emocional ou seus interesses. Jovens são mais sensíveis ao que é novo. Velhos, mais refratários. Mas há jovens conservadores e reacionários, assim como velhos empolgados com o futuro e com o que rompe com o passado.
Há épocas mais abertas e outras mais fechadas ao novo. O mundo atual, com sua dinâmica mudancista e suas revoluções incessantes em certos planos da vida (a tecnologia, a cultura, os direitos, as estratificações, as formas de trabalho e de organização da produção), fez da novidade algo mais forte do que o novo. Todos querem ser up to date, mas nem todos se dispõem à renovação substantiva.
O passado, a rigor, nunca passa, nunca acaba de acabar. Verdade conhecida por historiadores e cientistas sociais, a frase parece assumir proporções dramáticas no Brasil, que carrega em seu DNA a dificuldade de romper com os arranjos sociopolíticos que, vindos do passado e acumulados pelo tempo, terminam por frear ou moderar o progresso social. Entre nós, ressoam forte as célebres palavras de Marx no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Os “espíritos do passado” são recorrentemente convocados nos diferentes momentos da história, mas nem sempre para que se honrem os heróis e sim para que se aprisione o futuro.
Apesar de nunca acabar, o passado é um todo complexo. É História. Sempre dialogamos com ele. Mostra-se carregado de virtudes e defeitos, de heroísmo e tragédia, de erros e acertos. Deixa marcas, pegadas, traços, glórias e feridas fundas, protege, identifica e desafia. Temos, pois, que saber assimilá-lo e incorporá-lo à experiência.
Todo projeto opera com a ideia de futuro. Ainda que carregado de compromissos com o passado -- passado que é, em si mesmo, repleto de significado, lutas e derrotas, vencidos e vencedores, que se recriam de muitas maneiras --, o projetar é uma deliberada aposta no valor do que é novo, naquilo que se julga merecedor do desejo de ser alcançado: o desconhecido, que pode ser pensado como “racional”.
O arranque rumo ao futuro, porém, nunca é simples ou despojado de dramaticidade e resistência. A imagem eloquente de Walter Benjamin, construída a partir de um diálogo com a aquarela Angelus Novus de Paul Klee, merece ser recordada. Nela, diz Benjamin, “se vê um anjo que parece prestes a se distanciar de algo em que fixa o olhar. Ele tem os olhos arregalados, a boca aberta, as asas distendidas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está voltado para o passado”. Onde vemos uma cadeia de acontecimentos, este anjo enxerga uma única catástrofe contínua, que amontoa destroços sobre destroços. “Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. A tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
Devemos pensar nessa dialética para valorizar a história e entender seu ritmo. Marx e Engels escreveram na Ideologia Alemã: o processo histórico “ocorre muito lentamente; as diferentes fases e os diversos interesses jamais são completamente ultrapassados, mas apenas subordinados ao interesse vitorioso, e vão-se arrastando durante séculos ao lado deste”. 
O pensamento crítico não tem como “livrar-se” do passado ou negá-lo como história. Ao se realizar precisamente como crítica do presente, do que existe, sua meta é jogar luz sobre o futuro. Tal como a revolução social estudada por Marx no século XIX, este pensamento “não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro”. Precisa se “despojar de toda a veneração supersticiosa do passado” e “deixar que os mortos enterrem seus mortos”.
Aceitar o novo se confunde com aceitar o risco: o desconhecido. Força a que se saia daquilo que protege e dá segurança: o conhecido. Agarrar-se ao status quo não é somente um dado de resistência ou reacionarismo: pode também ser uma estratégia de sobrevivência.
As amplas massas populares, escreveu Gramsci, “mais dificilmente mudam de concepção” e, quando mudam, jamais mudam “aceitando a nova concepção em sua forma ‘pura’, por assim dizer, mas – apenas e sempre – como combinação mais ou menos heteróclita e bizarra” [CC, 1, 108].

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