sábado, 26 de maio de 2012

Novos e velhos ativistas


Quanto mais se observa o mundo, a América Latina e o Brasil, mais se percebe que a nossa é uma época com pouca "cabeça" politica, pouca direção. As mudanças em curso abalam a vida cotidiana, as relações sociais e o Estado, mas não têm um autor que se possa reconhecer. Apesar de haver uma revolução em marcha, nenhuma revolução propriamente politica ocorre. A revolução é passiva.
Impulsionadas por essa dinâmica, as sociedades se fragmentam, se individualizam e perdem instituições. Tornam-se cada vez mais parecidas entre si, mas dentro delas a diferença se reproduz incessantemente. Sem centros claros de coordenação, as partes (grupos, indivíduos, regiões) se afastam umas das outras e seguem lógicas próprias – ainda que, paradoxalmente, tudo fique mais conectado. Uma multidão de novos sujeitos gera novos conflitos e contradições, embora não consiga interferir de fato no jogo político e redirecioná-lo em termos emancipadores. A hiperatividade da sociedade civil ocorre mais em função da necessidade de autoexpressão que da disposição para organizar consensos. O risco de fragmentação corporativista da representação política aumenta, com efeitos deletérios sobre o processo político: partidos e governos se tornam mais “dependentes” dos interesses que vicejam em seu interior, perdem potência como representantes e ficam menos ágeis para tomar decisões.
Com isso, cai a confiança das pessoas nas instituições políticas. Os próprios politicos enredam-se sempre mais nos meios especificos da política, sejam eles a disputa eleitoral ou a distribuição de verbas e favores. A relação com os negócios agiganta-se. Cresce o risco de corrupção, diminui a densidade ética da política. Todos se tornam mais preocupados em gerir recursos de poder e maximizar interesses eleitorais, deixando de agir para organizar novos consensos e consentimentos. Desajustada pelos novos termos da vida social, a política passa a produzir mais problemas que soluções. Deixa de ser o principal fator de composição social e estabelecimento de equilíbrios e consensos. Sociedades, indivíduos, grupos, nações e Estados tornam-se partes soltas de um conjunto sem muita articulação sistêmica.
Mantém-se ativa, no entanto, uma expectativa social de “proteção” e operosidade estatal, sobretudo por setores marginalizados e por uma classe média que, em parte expandida pela incorporação de contingentes populacionais beneficiados por programas governamentais, e em parte empobrecida pelo desemprego e por politicas de ajuste, afirma seus direitos perante o Estado. Trata-se de uma expectativa que se liga à exigência de que os governantes "decidam e façam" (o que incentiva tendências populistas e de hipertrofia do Executivo), mas que se combina com uma crescente dificuldade para que se aceitem “ordens” que não nasçam de alguma modalidade de consulta ou interação. Pouco importa que os mecanismos deliberativos adotados produzam resultados precários, desde que eles sirvam para que se manifestem indignação, carências, desejos e opiniões.
Aumenta assim a disposição social para instituir uma nova “zona de ação política”, menos institucional e mais individualizada, de movimentação contínua, de pressões antissistêmicas erráticas, viabilizadas pelas maiores facilidades de comunicação e contato. Desponta uma nova politicidade, cujo teor e formato institucional ainda estão por ser estabelecidos.
Novas modalidades de engajamento seduzem antes de tudo os jovens, mas não se resumem a eles, pois tendem a crescer como uma espécie de paradigma da ação política. Sua característica essencial é o questionamento do ativismo tradicional, sustentado por organizações hierarquizadas, classes sociais e causas gerais. O novo ativista luta por direitos e reconhecimento, não por poder. Não sacrifica a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referencia por líderes ou ideologias. Age festivamente e sem rotinas fixas, valendo-se muitas vezes da sátira e do deboche. É multifocal, abraça várias causas simultaneamente. Sua mobilização é intermitente. Muitos atuam de modo pragmático, profissionalizam-se como voluntários, buscam resultados mais do que confrontação sistêmica. Seu ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.
Não há, porém, muralhas intransponíveis separando velhas e novas formas de ativismo, que se cruzam e podem se combinar de diferentes maneiras, beneficiando-se reciprocamente. Se suas agendas contém distintas ênfases e questões, tambem estão repletas de temas que somente podem ser enfrentados com sucesso se se interpenetrarem e forem articulados em uma plataforma de síntese politica.
O novo ativismo pode ser uma importante alavanca de construção do futuro. Será isso, no entanto, na medida em que considerar o conjunto da experiência social e convergir para a reforma democrática da sociedade, do Estado e da politica. Se tentar evoluir solitariamente, fechado em suas causas específicas e na busca de autoexpressão, só produzirá ruído e efervescência, perdendo em termos de efetividade.
A necessidade dessa articulação está posta pela vida. Afinal, o social que se fragmenta não desaparece como social. A dimensão coletiva da existência não se dissolve só porque a individualização se expande. Ainda continua a ser fundamental combinar ações e promover convergências. Além disso, os conflitos de classe permanecem mesmo que as classes não estejam podendo ser atores politicos no sentido próprio do termo. As estruturas de poder, ainda que possam ter enfraquecidos alguns de seus fluxos, preservam sua capacidade de emitir ordens, pressionar e coagir. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/05/2012, p. A2].

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Diálogos com uma sociologia indignada


Luiz Werneck Vianna dispensa apresentações. É um dos grandes cientistas políticos brasileiros, autor de uma obra com alta potência explicativa e muitas sugestões precisas, dessas que nos fazem pensar e rever concepções. Quem ainda não o leu e estudou, não sabe o que está perdendo.
Reconhecendo esse postulado básico, a Universidade Federal de Juiz de Fora criou uma Cátedra tendo Werneck Vianna como patrono. E, em 2010, organizou um excelente seminário dedicado a avaliar e discutir diferentes aspectos de sua trajetória e de sua obra. Tive o prazer de participar do seminário, que agora se converteu em livro.
Organizado por Rubem Barboza filho e Fernando Perlatto, o livro reuniu as conferências e intervenções feitas naquele seminário. Lidos em conjunto, os textos oferecem um panorama abrangente da agenda de pesquisa que Werneck vem explorando há décadas. É um prato cheio para quem deseja se aproximar dela ou se aprofundar nela.
A apresentação do livro foi feita por Manuel Palácios da Cunha e Melo, professor da UFJF, que reforça com muita competência o convite para que nos interessemos pelo livro. Vejam abaixo.
 O livro pode ser adquirido no site da Editora UFJF, clicando aqui.

Uma Sociologia Indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna

Manuel Palácios da Cunha e Melo
Universidade Federal de Juiz de Fora

Toda sociedade é um enigma, nunca integralmente resolvido. Há construções intelectuais, entretanto, que nos auxiliam com algumas pistas sobre o significado da experiência comum e a continuidade possível com as realizações dos que nos antecederam. Coube no Brasil à ciência social, sob a pressão dos fatos que no tempo curto de uma geração transformaram o país, colocar em cena um repertório reflexivo sobre a nossa história que por muito tempo ainda deve dotar de sentido os nossos desafios coletivos. Nesta coleção de intérpretes, Luiz Werneck Vianna ocupa uma posição de relevo singular, o que os artigos que compõem esta Sociologia Indignada demonstram de modo definitivo. O livro reúne as contribuições dos intelectuais que participaram do seminário organizado em sua homenagem pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2010, atividade inaugural da cátedra que leva o seu nome. 

A obra de Werneck é um esforço, ininterrupto por mais de três décadas, de interpretação da sociedade brasileira, às voltas com a sua modernização e o difícil itinerário da democracia entre nós, que veio encontrando forma no ensaio, na pesquisa empírica, no estudo acadêmico, no artigo jornalístico. De Liberalismo e Sindicato no Brasil, obra seminal de 1976, à sua última coletânea de artigos de conjuntura, publicada em 2011, são muitos os possíveis caminhos para se acercar de sua produção intelectual. 

O inventário da obra, intentado de diferentes modos nos artigos publicados, coloca o seu pensamento em perspectiva, ora no contexto das lutas políticas de que participou – Werneck esteve presente em todas as lutas da democracia – ora no contraponto de outros pensadores, proporcionando a oportunidade de o leitor percorrer com suas próprias experiências e indagações o longo caminho que se estende dos anos 1970 aos tempos democráticos de hoje. Vista em seu conjunto, é uma construção que impressiona pela unidade de método, o rigor do pensamento e a eleição de temas que sempre encontram um modo de se juntar à reflexão sobre os percalços da civilização brasileira. Pois é bom lembrar que essa trajetória tem início com uma esquerda ainda dominada pela questão nacional e uma interpretação de nossa história fixada nas impossibilidades, ou como lembrou o próprio Werneck em uma das passagens do livro “na falta daquilo que jamais fomos”. 

O livro também explora com competência outra dimensão da obra de Werneck Vianna, estreitamente associada às vicissitudes da democracia e da modernização,  isto é, a sua importância no processo de institucionalização das ciências sociais no país. Autor de uma produção que se estendeu por diversos objetos de pesquisa empírica, também extensamente tratados no livro, Werneck dedicou-se muito ao estudo dos intelectuais e suas instituições, entre os quais os próprios cientistas sociais. Em diversos trabalhos, observa-se a intenção de inscrever a nossa sociologia na história do pensamento social brasileiro, combatendo a percepção ingênua de que os problemas não possuem história anterior aos métodos e artigos da ciência institucionalizada. Não à toa as duas conferências programadas para o Seminário colocaram sob foco as ideias sociais e políticas brasileiras: Francisco Weffort, com Origens do Brasil: nossas heranças ibéricas, e José Murilo de Carvalho, com República, democracia e federalismo: Brasil, 1870-1891. 

Enfim, Rubem Barboza e Fernando Perlatto produziram um livro excepcional, de leitura obrigatória a todos os interessados em uma sociologia comprometida com a vida pública e a mudança social.