sábado, 25 de fevereiro de 2012

José Enio Casalecchi e a UNESP, 36 anos depois


Ao ficar sabendo, no dia 19 de fevereiro, da morte do historiador, meu amigo e colega José Enio Casalecchi, foi como se uma incontrolável máquina do tempo tivesse sido acionada. A notícia triste, muito triste, me projetou para o passado. Convivi com ele desde meus primeiros anos na UNESP, ainda nos anos 1970. Zé Enio foi uma dessas personalidades que ajudaram a construir a universidade, a agregar pessoas e a dar rumo para as atividades acadêmicas. Entre 1979 e 1983, nossas relações foram particularmente fortes, em decorrência do esforço que fazíamos para inserir a universidade nas lutas democráticas contra a ditadura. José Enio foi um dos principais esteios da UNESP que ganhou fôlego a partir de 1984. Por sua visão institucional, sua afabilidade, sua generosidade e sua firmeza tornou-se um dos mais importantes diretores da minha faculdade, em Araraquara. Sua morte abriu um vazio que dificilmente será preenchido. É uma perda enorme. Dessas que a gente lamenta, chora e tem dificuldade para assimilar.
Dediquei a ele o artigo que saiu no Estadão de hoje e que vai reproduzido abaixo. Não é uma homenagem que possa estar à altura dele. É somente um gesto a mais para associá-lo à história da UNESP. A dedicatória que abriu o artigo procura destacar sua importância, para mim e para a universidade.

 
À memória do Prof. José Enio Casalecchi (1939-2012),
cujo legado honra uma geração.

Quando a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- UNESP foi criada, em 1976, poucos acreditavam que daria certo. A organização de uma instituição universitária digna do nome a partir de faculdades isoladas distribuídas por 15 cidades do interior paulista parecia desafio impossível de ser vencido. Fugia das tradições acadêmicas brasileiras e não tinha modelos para seguir. Além do mais, o clima geral do país – estávamos no auge da ditadura militar – hostilizava a vida intelectual, esteio da organização acadêmica que se pretendia.
Os primeiros anos foram difíceis, marcados por muitas arbitrariedades. Havia no entanto uma base de onde partir, fornecida pelas faculdades que se reuniam na nova estrutura e estavam solidamente estabelecidas. A ideia-força era consolidar o que se tinha para então interiorizar a universidade. O esforço confundia-se com a expectativa de democratização do país, ganhando fôlego e impulso com ela.
O primeiro reitor organicamente vinculado à comunidade acadêmica, Jorge Nagle, foi escolhido no mesmo momento (1984-1985) em que o regime militar se decompunha, às portas da Nova República. Foi ali, naqueles anos emblemáticos, que a UNESP ganhou seu primeiro sopro de identidade e começou a se reconhecer como tendo direito de existência, sem sentimento de inferioridade em relação a outras universidades.
Hoje, passados 36 anos, a UNESP é uma universidade com todas as letras. Passou a ser vista com respeito dentro e fora do país. Está implantada em 23 cidades, incluída a Capital do estado. E exibe números impressionantes.
Seus 3,5 mil professores compõem com os 7.153 funcionários uma plataforma consistente para as atividades de ensino, pesquisa e extensão de serviços. A UNESP oferece 171 opções de cursos de graduação, que formam, por ano, 5,6 mil novos profissionais e agregam mais de 35 mil alunos. Na pós-graduação, mais de 10 mil alunos estudam em 117 mestrados e 93 doutorados acadêmicos. Milhares frequentam cursos de especialização. Os inscritos no vestibular passaram de 9.700 em 1976 para 89.550, pois o numero de vagas oferecidas aumentou de 2.800 para 8.000.
A UNESP está entre as instituições que mais produzem ciência no Brasil, em todas as áreas. Seus projetos de extensão universitária incluem o apoio à gestão municipal, a orientação a pequenos empresários, o atendimento médico e odontológico, a formação de professores e a previsão do tempo para agricultores.
Sua infraestrutura inclui 1.900 laboratórios e 30 bibliotecas, com 2,6 milhões de livros, além de museus, biotérios, clínicas de psicologia e fisioterapia, hospitais veterinários e cinco fazendas experimentais, perfazendo uma área total de 62,8 milhões de m2. Conta ainda com o importante Hospital de Clínicas de Botucatu, com 462 leitos, e administra o Hospital Estadual Bauru, com outros 318 leitos.
A UNESP deixou de ser vista com desconfiança. Em 2010, figurou em 6º lugar no Ranking Iberoamericano SIR. Ao longo de 2011, avançou 116 posições no Webometrics Ranking of World Universities, passando a ocupar a 122ª posição no mundo e a 4ª na América Latina. Por mais que tais rankings sejam polêmicos e não devam ser lidos de forma produtivista, deixando de lado a qualidade do que se faz, alguma coisa eles indicam.
Como pôde a UNESP dar este salto? Houve, antes de tudo, a longa série de reitores comprometidos com a construção de uma universidade que se dedicasse à pesquisa sem descuidar do ensino e que fizesse de sua distribuição espacial um fator de adensamento estratégico no território paulista. Isso possibilitou a fixação de um padrão de gestão e facilitou a incorporação da ideia de autonomia não como questão financeira, mas sim como liberdade de fazer escolhas e tomar decisões – autonomia diante do Estado, dos dogmas, dos interesses particulares e das pressões locais.
Mas nada disso teria proliferado se professores e servidores técnicos não tivessem demonstrado determinação. Quem trabalha na UNESP sabe como é forte o preconceito contra as “faculdades do interior” e como pesa a atração dos grandes centros. Houve um momento em que a UNESP parecia ser uma espécie de trampolim para a USP. Alguns docentes fizeram esta trajetória, que nada tem de condenável. A maioria, no entanto, permaneceu nos campus, convertendo-os em ótimos lugares para se produzir ciência e ensinar. São eles o maior patrimônio da UNESP.
Hoje, imersa numa fase de sucesso, a UNESP precisa permanecer interpretando com rigor o mundo e as pessoas que a cercam. Há problemas e desafios novos a exigir respostas novas, tanto no âmbito da gestão quanto do ensino e da pesquisa. Muitos deles são de natureza ética e política. Como ensinar, como ligar a formação acadêmica ao mercado, como fazer ciência de ponta sem deixar de lado a ciência aplicada? O que fazer com as tecnologias da informação e o as possibilidades de ensino à distância? Qual o papel dos professores na direção da universidade? Não há consensos consistentes a este respeito. Dá-se o mesmo com inúmeras outras questões.
O vitorioso projeto da UNESP tem tudo para seguir em frente. Sua continuidade depende basicamente da capacidade que a comunidade acadêmica (os professores, sobretudo) tiver de fortalecer os pactos internos e o diálogo institucionalizado. Daqui para frente, problemas e desafios tenderão a ser sempre mais complicados. Exigirão, por isso mesmo, doses adicionais de entendimento e articulação, para que interesses e modos de pensar particulares continuem a se manifestar sem competir entre si de modo improdutivo. Esse é certamente o melhor recurso para que o planejamento institucional possa ser feito com os olhos no longo prazo e nas necessidades sociais. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/02/2012, p. A2].

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

José Nêumanne e a verdade histórica

Charge de Frank
O jornalista José Nêumanne publicou hoje no Estadão um artigo repercutindo os fatos do Pinheirinho. (Veja aqui.)É uma análise do que ele considera ter sido o essencial do evento e daquilo que mais se destacou em tudo o que se disse a respeito: “a obediência à palavra de ordem emanada do Comitê Central”, que ainda permanece viva, “uma chama acesa a incendiar não mais os corações e mentes dos seres humanos, mas a velha e boa ordem da democracia burguesa”. Hoje, na avaliação dele, a palavra de ordem é "pau neles!".

O problema é que o Nêumanne me põe nesse barco, pois seu artigo é uma réplica ao meu, publicado sábado passado no mesmo espaço. Ele começa elegante, afirmando que meu artigo “está carregado de correção política e legitimidade acadêmica”. Faltar-lhe-ia, contudo, “verdade histórica”. 

Segundo ele, eu me condoo da situação dos desabrigados, o que todos fizeram. Também critico a falta de política habitacional e a omissão dos governos, o que ele apoia e aplaude. 

Onde estaria então o meu erro? É que eu não teria dado o devido valor ao Estado Democrático de Direito, no qual vigora o império da lei e a Justiça é soberana: “cabia ao governador mandar cumprir a ordem judicial. Só isso”.  Reclamei dos excessos da PM e isso também desgostou o Nêumanne: “Ninguém percebeu a fotografia publicada nos jornais de uma tropa armada de paus e pedras para defender direitos inexistentes sobre solo alheio? Ninguém, de sã consciência, esperava que tropas policiais enfrentassem esses resistentes levando flores no cano de fuzis, em vez de baionetas”. O importante era desarmar os invasores, impedindo um banho de sangue, e expulsar de lá os invasores, que estavam flagrantemente contra a lei.

Por não ter visto nada disso, eu teria praticado o mesmo tipo de denúncia feita pela presidente Dilma e por outros dirigentes do PT: “O saber do mestre e a imensa popularidade da presidente não conseguirão atenuar a barbárie de quem, não tendo votos, recorre a paus, pedras e ovos para tentar impor seus argumentos”.

Não pretendo ficar discutindo com o Nêumanne, um jornalista experiente, a quem aprecio e que é meu colega ali na pág. 2 do Estadão. Li seu artigo como uma peça ideológica em defesa do liberalismo. Também acho que a ele falta verdade histórica e sobretudo sensibilidade social. Não é porque se defende o Estado Democrático de Direito (coisa que faço com a maior veemência) que se precisa defender dogmaticamente uma ação policial explosiva. Uma decisão judicial pode ser aplicada de diferentes maneiras, sugeri em meu texto. O modo como foi aplicada no caso do Pinheirinho foi péssima, independentemente do que digam os políticos e os analistas. Os efeitos nefastos da operação estão expostos à luz do dia.

Houve excesso policial e certamente estão havendo excessos entre aqueles que criticaram e que apoiaram a desocupação do terreno. Nada a escandalizar ou a surpreender. Vivemos uma época de excesso, já não houve quem disse isso?

Tudo hoje no Brasil vira bate-boca partidário. Verdades e mentiras converteram-se em frases ocas, que não conseguem ser comprovadas nem discutidas adequadamente. Tudo é ideologia. Até o Senador Aloysio Nunes Ferreira, meu senador e meu amigo, a quem respeito como poucos na política, acabou por se deixar levar pela necessidade de marcar posição na guerra partidária em que se converteu o Pinheirinho. Escreveu na Folha de S. Paulo de hoje (veja aqui) um artigo para denunciar o que considera “uma fábrica de mentiras montada pelo PT para divulgar nas próximas campanhas eleitorais”. Ele pode ter razão em alguns dos fatos, mas só fez o que fez para defender o governo estadual, não para esclarecer o que de fato aconteceu.  Enquanto o PSDB “constrói casas”, escreveu, o PT “flerta com grupelhos que apostam em invasões e que torcem para que a violência leve os miseráveis da terra ao paraíso”.

É um discurso afiado eleitoralmente, mas que ajuda muito pouco seja ao estabelecimento da verdade, seja ao entendimento entre as forças políticas, que é, de resto, aquilo de que o Brasil mais precisa.

Igualzinho ao do Nêumanne, aliás.

A gente, na verdade, devia é estar trabalhando para despartidarizar o Pinheirinho e encontrar um rumo democrático para as reformas sociais de que tanto precisamos.