quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Entrevista: Gramsci, esquerda, democracia

Setenta anos depois de sua morte, Gramsci persiste como grande interlocutor da esquerda. Ao lado da valorização da cultura, da política e da sociedade civil, seus Cadernos do cárcere repuseram a questão do Estado como eixo de qualquer movimento político dedicado a influir nos embates de hegemonia e na proposição de novos projetos para a sociedade. Para ele, reforma e revolução são termos que se interpenetram e se complementam. E aqueles que se põem desta perspectiva se caracterizam, não pelo respeito canônico a princípios abstratos, frases e pensamentos cristalizados no tempo, mas por uma interação ativa e criativa com a realidade.

Na entrevista que concedi à Revista IHU Online (Edição 231, Agosto de 2007), vinculada ao Instituto Humanitas Unisinos, discuto, entre outras coisas, a idéia de que os movimentos e partidos que continuarem a imaginar a sociedade atual como se fosse a "mesma sociedade de classes claramente definidas e posicionadas umas contra as outras, como na época de Gramsci, não terão condições de exercer funções positivas de direção política e cultural”.

Leia a entrevista

Mundialização plural

A imagem de um mundo global, interligado e cada vez mais padronizado está na percepção de todos. Mas seria isso indício de que estariam se dissolvendo as diferenças entre povos e pessoas e desaparecendo a especificidade das distintas experiências histórico-sociais e culturas?

A questão faz sentido e tem estado na base de muitas postulações em defesa da integridade nacional e da pureza cultural.

Antes de tudo, convém lembrar que não há como não se ter diferenças enquanto se tiver desigualdades, sobretudo aquelas profundas, associadas a disparidades de renda, de poder econômico, de status, de oportunidades – ou seja, as desigualdades sociais, impulsionadas pelo afã de acumular, pelos regimes de propriedade, pela volúpia do capital. Esse é o lado perverso e desagradável das diferenças, algo que mantém a humanidade com um pé preso na barbárie. Em que pesem todos os discursos mais ou menos simplificadores e todos os esforços reformadores, a desigualdade social continua ativa, em expansão.

Mas o mundo mundializado também assiste a um ininterrupto e crescente processo de produção de diferenças que estão associadas a algo nada perverso. Povos, indivíduos, grupos e comunidades étnicas sentem-se hoje sempre mais impelidos a proclamar, vocalizar e difundir sua especificidade, aquilo que os distingue e singulariza no contexto padronizado e aparentemente “igualizado”. Podem fazer isso, precisam fazer isso e querem fazê-lo. Vista desse ângulo, a mundialização é radicalmente plural. Nunca fomos tão parecidos e tão diferentes.

Há mesmo hoje uma compulsão pela diferença, pela afirmação de identidades específicas. De um lado, impulsionadas pelo mercado e pela moda, muitas pessoas buscam nas grifes, na “customização” e na exibição de bens regra geral supérfluos um modo de se destacarem na multidão. De outro lado, grupos, comunidades e indivíduos lutam para defender sua singularidade substantiva – seu orgulho étnico, suas tradições, sua raça, sua religião – e seu direito de serem respeitados e reconhecidos como tais. Trata-se de um movimento que, no primeiro caso, exacerba uma diferenciação vazia de significado e que, no segundo, fortalece e viabiliza uma diversidade fundamental para a reprodução da humanidade como algo digno.

A sociedade mundial em constituição não tem propriamente uma cultura global a ela vinculada, sobretudo se pensarmos nisso como esmagamento das distintas culturas locais, regionais ou nacionais. É verdade que, impulsionada pela dinâmica global, uma espécie de “cultura McWorld” infiltra-se nos mais distintos arranjos sócio-culturais, ávida pela conformação de um monolítico “povo” de consumidores. Além disso, o maior intercâmbio de informações cria inúmeros incentivos para que os distintos valores culturais se aproximem uns dos outros e se misturem. Tem-se assim a impressão de que há uma única língua no mundo, de que se come uma única comida e se cantam as mesmas canções em todos os cantos. É uma impressão que reflete a realidade. Afinal, a globalização não diminuiu a diferença de potência entre os Estados, nem eliminou a capacidade que alguns atores têm de dirigir e influenciar pelos valores e pelas ideologias os demais.

Há de fato predomínio de certos hábitos e comportamentos, e não é por acaso que o inglês é uma espécie de língua global. A situação, porém, é seguramente mais complicada.

A redução das distâncias, a maior facilidade para se viajar e circular, as conexões em tempo real, a visualização de cenários simultâneos e a difusão em redes das mais diversas manifestações culturais produzem uma imaginação solta em relação aos territórios e aos Estados nacionais. Grupos e pessoas tornam-se bem mais disponíveis em termos intelectuais, éticos e comportamentais. Uma cultura mundial fica assim delineada, ganhando fôlego e se beneficiando da constituição de um espaço supraterritorial (e portanto supranacional): o ciberespaço.

Nesse movimento, alguns valores já mundializados (como, por exemplo, o fast-food, a música e o cinema norte-americanos) tendem a aumentar sua influência e são ainda mais incorporados pelas pessoas. Mas não há nada que se aproxime de homogeneização cultural. As práticas cotidianas dos povos, enraizadas em territórios e em histórias reais, passam a ter de lidar com novos ingredientes, pressões e circunstâncias. Entram em contato com outras “informações” culturais, assimilando-as e convertendo-as em material para re-elaborar seus próprios conhecimentos e experiências. Nessa dialética, também vão se expondo aos outros, comunicando-se mais e afirmando-se como identidade. Mais que multicultural, nosso mundo é fruto e palco de um cruzamento de culturas: é intercultural. No final de tudo, tem-se mais consciência das diferenças, maior aceitação daquilo que distingue uns e outros, maior respeito pela especificidade de cada um e, ao mesmo tempo, maior integração. A miséria, a desigualdade e a opressão persistem, mas não sem tensões e contradições.

A pluralização da experiência humana é um poderoso instrumento de construção do futuro, dentro e fora das sociedades nacionais que, de resto, se internacionalizam rapidamente. Representa a possibilidade de uma unificação aberta para a emancipação, a construção de uma unidade do diverso em novas bases.

Ao mesmo tempo, a luta pela afirmação e pelo reconhecimento de identidades específicas – que de modo algum é estranha à história humana – expressa a necessidade que todos sentem de encontrar um lugar ao sol, um modo de se inserir num mundo que sob vários aspectos parece fora de controle e está revirando as bases que davam equilíbrio e “cara” aos grupos, aos indivíduos, às instituições. Todos querem ser “diferentes” e passam a respeitar mais as diferenças porque desse modo, quem sabe, aumentam suas chances de encontrar a própria identidade. [O Estado de S. Paulo, 24/03/2007]


quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Para pensar

«Se nos limitamos a fundar o poder exclusivamente sobre a força, como se faz para distinguir o poder político do poder de um bando de ladrões?» (Rousseau, Do Contrato Social)


«Existem dois gêneros de combates: um com as leis e outro com a força. O primeiro é próprio ao homem, o segundo é o dos animais. Porém, como freqüentemente o primeiro não basta, convém recorrer ao segundo. Portanto, o príncipe deve saber usar bem tanto o animal quanto o homem. O príncipe precisa ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos.» (Maquiavel, O príncipe, cap. XVIII)


terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O poder da cidade

Nada mais adequado para um ano eleitoral, quando os governos das cidades serão renovados em todo o país, do que refletir sobre as funções do poder político. Afinal, o que pretendem fazer com ele os milhares de candidatos que em breve estarão disputando os Executivos e Legislativos municipais? O que esperam deles os cidadãos que, direta ou indiretamente, em maior ou menor grau, sofrem ou se beneficiam com as decisões que passarão a ser tomadas após a posse dos eleitos? E como se dão, ou não se dão, o vínculo e o relacionamento entre estes dois pólos básicos da política, os governados e os governantes?

O poder político costuma ser visto como dotado de valor em si, isto é, como uma posição a partir da qual seu ocupante pode tudo, ou quase. Na tradução nacional, isto também significa, muitas vezes, estar acima da lei e ser indiferente às expectativas sociais. Ou seja, um político é tratado, em geral, como alguém que trabalha intensamente por seus próprios interesses, quando muito os misturando com os interesses de alguns grupos, partidos ou regiões. Dificilmente se imagina que um político possa ser um recurso social fundamental, um articulador da sociedade, um personagem sem o qual a força se converte na principal ferramenta de resolução de conflitos e problemas.

Isso acontece por inúmeros motivos. Entre políticos e cidadãos existe uma espécie de abismo ético que dificulta que os segundos aceitem as razões usadas pelos primeiros para justificar muitas de suas condutas. Ajudam a aprofundar este abismo, além do mais, a má formação política das pessoas, a indiferença cívica dos cidadãos, a mediocridade ética de tantos políticos, a impotência programática dos partidos e, mais recentemente, a postura abertamente mercantil que passou a prevalecer na vida em geral. No mundo de hoje, a maioria das decisões e atitudes cotidianas estão focadas no custo e numa espécie de prazer de curto prazo, importando pouco o sentido, o significado substantivo e o valor futuro dos bens. As eleições também se converteram em atos de compra-e-venda de votos. E os candidatos, animados por este mercado, agem de acordo com suas regras, esvaziando de sentido as mensagens com que buscam o apoio dos eleitores. Desapareceram assim os programas e os projetos de vida coletiva.

Muitos candidatos a prefeito – ou candidatos a candidatos, se considerarmos a fase atual –, por exemplo, costumam se apresentar como gerentes de cidades, bons administradores, tocadores de obras, empreendedores, porque imaginam que é isso que esperam deles os eleitores. Não estão propriamente errados, pois é evidente que qualquer governante que se preze deve de fato ter estes atributos. Mas, ao assim se comportarem, desprezam a parte mais nobre da função política democrática (que é a de auxiliar a que uma comunidade modele a si mesma de forma justa e igualitária) e acabam por impulsionar a conversão dos cidadãos em “consumidores” e fiscais de decisões burocráticas. Perde-se o que a política tem de melhor, e os candidatos a estadistas terminam por ser reduzir, se forem competentes, a bons administradores. Ao final de seus mandatos, podem até deixar marcas de sua passagem pelo poder, mas pouco contribuem para modificar a face quente da comunidade.

Numa megalópole como São Paulo, dá para imaginar os estragos derivados desta postura. A cidade é um bólido que avança às cegas, sem uma visão de futuro. Seus problemas se superpõem assustadoramente, desafiam a inteligência técnica e política, atormentam e angustiam, terminando quase por soterrar a força, a criatividade e o dinamismo dos moradores. Carece de discussões públicas consistentes e de ação organizada, que parece hoje confinada aos espaços em que a vida é mais dura e sofrida, onde a solidariedade e o apoio mútuo brotam como estratégia de sobrevivência. Com “gerentes” no comando, tudo isso fica bem mais difícil.

Os que desejam governar São Paulo não deveriam tentar pedir votos mediante a apresentação de currículos gerenciais ou de listas de soluções ad hoc. Além de buscar defender os interesses de um grupo ou partido e alterar a orientação dos governos anteriores, sua principal promessa deveria ser a de despertar a cidade vibrante e cheia de vida que parece anestesiada por seu próprio crescimento desorganizado, fazê-la falar, pensar e agir, alterando a correlação de forças políticas e sociais e refazendo o pacto social substantivo.

Haverá certamente quem se prontifique a advertir: ora, o poder municipal é essencialmente um poder administrativo, não cabe a ele contagiar os cidadãos com programas ou projetos “maximalistas”, pouco pragmáticos, que não apresentam resultados práticos no curto prazo. As cidades estão aí, com seus problemas latejantes e imediatos, não querem saber de conversas filosóficas e utopias, precisam de ação e determinação.

Pode até ser, mas uma coisa não elimina a outra. Boa parte da fantasia política democrática sempre esteve voltada para unir interesses e opinião, balizando a tomada de decisões a partir de reflexões sobre o bem comum. O poder democrático apóia-se em um projeto destinado a tornar viável o governo do povo (a soberania popular) a partir de regras válidas para todos e de arranjos institucionais que facilitem tanto a livre competição política quanto a participação ampliada nos processos decisórios. Toda política efetivamente democrática dispõe-se a criar condições para que os cidadãos controlem seus governos, participem deles e ponham em curso processos alargados de deliberação, de modo a que se viabilizem lutas e discussões públicas em torno do viver e conviver. E nada disso pode ser alcançado sem generosas doses de utopia e ação reflexiva.

O poder que tem a cidade de modelar novas comunidades exige que aqueles que se disponham a governá-la possuam, mais que projetos dedicados à conquista do poder, um projeto de sociedade. [O Estado de S. Paulo, 26/01/2008]

domingo, 27 de janeiro de 2008

Desejos de poder

Se olharmos retrospectivamente para o ano que ora se encerra, não será difícil constatar que a política, honrando suas tradições, organizou-se em torno da disputa pela conquista, pelo uso e pela conservação do poder.

A determinação do presidente Hugo Chávez em ver aprovado o plebiscito que lhe daria condições de se candidatar sucessivas vezes ao cargo, tanto quanto a iniciativa de ex-comunistas e ex-democratas-cristãos italianos de se fundirem em um novo partido de centro-esquerda, fazem mais sentido quando pensadas tendo em vista a questão do poder. Boa parte da agenda brasileira de 2007 repercutiu um eventual interesse do presidente Lula em conquistar um terceiro mandato, fato por ele sempre desmentido mas deixado em banho-maria graças à iniciativa de deputados da base governista no Congresso. Foi também por questões de poder que as oposições se empenharam na derrota da CPMF, decisão que refletiu muito mais cálculos eleitorais (tendo em vista as eleições de 2008, momento formal de luta aberta pelo poder) e erros governamentais do que uma avaliação do significado daquele imposto e da função que ele desempenha na vida nacional. Foi como se o governo Lula devesse ser responsabilizado pela criação e manutenção de um tributo que existia há 14 anos, que foi adotado para financiar políticas da Saúde e que sempre foi controvertido. Supôs-se que a população toda seria contra a CPMF, encurralou-se o governo e partiu-se para um bem-sucedido ataque final. Os operadores políticos governamentais, por sua vez, limitaram-se à retórica mais ou menos abstrata da justiça social e não souberam usar o poder real de que dispõem para safar-se da armadilha.

Amado e odiado indistintamente, o poder perturba, leva pessoas à loucura, corrompe e alucina, mas também serve para que se movam montanhas e para que multidões dispersas se organizem. O poder reprime, incomoda e prejudica, mas também acalenta, protege, incentiva e beneficia. Costuma ser utilizado tanto para conservar quanto para revolucionar, tanto para promover mudanças quanto para preservar o status quo. É visto como instrumento e como fim último, como recurso e como meio de vida.

“É tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder, que cessa apenas com a morte”, escreveu Hobbes no Leviatã (1651). Ele reiterava uma idéia anterior, que Maquiavel havia exposto em seus Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio (1517): “não se pode determinar com clareza que espécie de homem é mais nociva numa república: a dos que desejam adquirir o que não possuem ou a dos que só querem conservar as vantagens já alcançadas”. Maquiavel não economizaria palavras: “a sede de poder é tão forte quanto a sede de vingança, se não for mais forte ainda”.

Não há política sem poder. Mesmo em suas formas mais generosas – as da ação que busca emancipar, livrar pessoas da desigualdade, viabilizar a “boa sociedade” ou resistir a governos tirânicos –, a política é uma atividade balizada pelo poder. Sempre se faz a partir do poder, tendo em vista o poder, contra ele ou em direção a ele, como observou várias vezes Norberto Bobbio.

Mas política não é somente desejo de poder. É também aposta nas vantagens da vida coletiva, um espaço em que se combate para ampliar as margens de liberdade e construir os fundamentos da vida comum.

Hoje nos deparamos com uma situação paradoxal. A democratização e a individualização modernas se expandiram expressivamente, do mesmo modo que a democracia parece consolidada como regime político, em que pesem falhas e sobressaltos. Temos mais poder como pessoas, mais direitos e mais liberdade para contestar a autoridade e fazer coisas, porém nos encontramos em uma situação geral na qual nos sentimos oprimidos pela incerteza, pela insegurança e pela inoperância da maioria dos centros que nos governam. Não sabemos visualizar com clareza a fonte desta opressão e deste mal-estar, e vivemos com a sensação de que governantes, chefes e dirigentes não têm assim tanto poder, permanecendo muitas vezes em segundo plano. O mercado e o capital são sempre mais poderosos, os Estados parecem sem força, cercados por sistemas que não conseguem regular. Há um clima de crise de autoridade e de “desinstitucionalização”, ao mesmo tempo em que se abrem novos horizontes e possibilidades.

O poder político tem hoje efetivamente menos poder. Diversos processos objetivos, associados ao que se costuma chamar de globalização e à radicalização da vida moderna, estão a reduzir o grau de controle que as estruturas governamentais têm sobre as sociedades. Quando territórios e pessoas são afetados por muitos fluxos (comerciais, de informação, culturais, políticos) ou sofrem os efeitos de decisões tomadas por diferentes atores ou protagonistas, ou quando simplesmente não podem ser alvo de opções governamentais voluntárias e soberanas, o poder político declina. Passa-se a viver sob os efeitos de uma rede de poderes cruzados, que se remetem uns aos outros e tendem a problematizar o poder central e a fazer sangrar o sistema representativo.

Podemos olhar para o ano que se inicia com uma dupla expectativa: não há como esperar, ingenuamente, que o poder político deixe de nos oprimir, não sirva para mais nada e nem possa ser útil, mas as circunstâncias da vida atual estão reduzindo a arrogância do poder e, nesta medida, criam muitas oportunidades para que se inicie uma fase social mais rica e interessante. Abrem-se novos espaços para que grupos, organizações e indivíduos façam política e interfiram na condução das coisas públicas. Isso, por enquanto, é somente uma possibilidade, mas não há porque desprezar o que ela carrega de potência, nem porque deixar de valorizar seus primeiros gestos e ruídos.

Bom ano novo a todos. [O Estado de S. Paulo, 22/12/2007]

Escassez de estadistas

(Grazie, Liberati, pela ilustração.)

O inusitado bate-boca entre o rei Juan Carlos, da Espanha, e o presidente venezuelano Hugo Chávez, no início de novembro, em Santiago do Chile, na 17ª Cúpula Iberoamericana, pode ter trazido à mente de muitas pessoas a imagem de que já não se fazem mais estadistas como antigamente.

Convém começar demarcando o terreno. Palavras ásperas, modos grosseiros, agressividade verbal e destempero não são de modo algum atitudes estranhas ao universo da política. Disputam espaço, palmo a palmo, com o sarcasmo, a ironia, a simulação e a dissimulação, a coação, a chantagem e a força. São formas expressivas da palavra e do gestual específico da política. Não haveria porque ficarmos escandalizados, portanto, quando um rei e um presidente atacam-se com farpas e palavrões, por mais que isso seja feio e cause má impressão. Se fizerem isso em nome de uma boa causa, de um conteúdo oculto que venha a se manifestar mais à frente, obterão o beneplácito dos deuses.

No caso em questão, é aí que o carro pega. Tirando o fato de que a reunião de cúpula onde se deu a briga pouco produziu de importante, o confronto revelou uma face triste da política atual: a do vazio comunicacional, da falta de substância, da teatralização gratuita. O meritório esforço diplomático e ponderador do premiê espanhol José Luis Rodríguez Zapatero foi um fugaz facho de luz, que somente serviu para destacar a escuridão.

Já deveríamos ter nos acostumado com o histrionismo de Chávez, característica que praticamente organiza o seu self político. Sem ele, Chávez não é Chávez. Trata-se de uma forma de exercer comando e protagonizar a cena: espetacular, imagética, redundante, hiperbólica, como se a vitória política dependesse não do teor da argumentação ou da mensagem, mas da contundência verbal, da demolição ou da saturação do adversário, reflexo de certa obstinação em ganhar todos os confrontos e discussões. É um estilo decodificável, válido em certas circunstâncias, que requer dos interlocutores uma dose alta de paciência, serenidade e sangue-frio.

Não se pode recriminar Chávez por dele se valer. O presidente venezuelano não é um político qualquer e não há como criticá-lo por falta de apoio popular, muito pelo contrário. Seu governo não parece sustentado por nenhuma idéia particularmente brilhante, mas Chávez tem se mostrado muito eficiente no que diz respeito à comunicação com seu povo, sinal de que, ao menos na Venezuela, seu estilo político produz efeito.

Mas bastaria talento comunicativo, veemência e apoio popular para que se tenha um estadista? Do mesmo modo: teria se comportado como estadista o rei Juan Carlos, quando mandou Chávez calar a boca, para defender as cores e a honra da Espanha?

Poderíamos completar esta pequena galeria de maus passos políticos com a enigmática fala do presidente Lula, dias atrás, a respeito de democracia, sistemas de governo e permanência no poder. Com o intuito de defender Chávez das acusações de antidemocrata, e em nome da justa idéia de que se deve sempre “respeitar a soberania de cada país”, o presidente brasileiro atropelou a teoria política para definir a democracia como um regime cuja única e suficiente regra é a permanente consulta popular. Banalizou o fato de um governante querer se prolongar no cargo, usando como exemplo os longos períodos de governo de alguns primeiros-ministros, sob a alegação de que não há nenhuma distinção neste aspecto entre o presidencialismo e o parlamentarismo (“muda apenas o sistema, mas o que importa não é o regime, é o exercício do poder”). Não foi uma contribuição para a educação política da população.

Estadistas não são governantes que contam com apoio popular, discursam com paixão e se esmeram na defesa intransigente de seus países. Devem fazer isso também, mas espera-se que façam mais. Não são necessariamente pessoas cultas, educadas e corteses, ainda que se espere que se comportem de acordo com certos parâmetros de respeito e civismo e ajam prioritariamente segundo regras institucionais e procedimentos diplomáticos.

Estadistas são acima de tudo governantes que se destacam por possuir e encarnar um projeto coletivo, quer dizer, um projeto de sociedade ou de unidade nacional, que inclua mais que exclua e anuncie com clareza um futuro plausível e “desejável”, uma vida digna para todos, não somente para os que estão do seu lado ou pensam como ele. Não se distinguem pelo carisma ou pela lealdade às tradições de seu povo, por mais que isso seja relevante. Sua diferença específica repousa na capacidade de agregar diferenças, unificá-las e organizá-las em um Estado, em uma comunidade política, isto é, em uma associação que se movimenta segundo pactos simbólicos e institucionais que balizam e promovem a vida coletiva.

Deste ponto de vista, a nossa é uma época opaca, meio melancólica, condenada a governantes sem muita densidade, que atuam mais como operadores administrativos do que como formuladores de projetos ou construtores de consensos.

Estadistas andam escassos porque faltam talentos à política. Hoje, por carecer de paixão e sentido e não dispor de molduras institucionais coerentes, a política não está conseguindo selecionar as melhores lideranças. São escassos, também, porque os governantes dos nossos dias governam com limites elevados, que muitas vezes os impedem de ter papel de relevo. E são escassos, por fim, porque líderes e governantes não têm mais como cumprir a função precípua de unir o povo e organizar um projeto de sociedade. As sociedades da era capitalista global estão fragmentadas e individualizadas demais para que alguém, num estalar de dedos, as articule e mobilize para um empreendimento coletivo sustentável. [O Estado de S. Paulo, 24/11/2007]